Acordo de Lula e Papa cria cidadão de segunda classe, diz especialista

SÃO PAULO - A portas fechadas e em uma rápida visita a Roma, o governo brasileiro assinou no dia 12 um acordo com o Vaticano que versa sobre a atuação da Igreja Católica no País. O tema não foi debatido com a sociedade. Para representantes de outras religiões e especialistas, o documento fere a separação entre Igreja e Estado no Brasil, prevista na Constituição. Roseli Fischmann, professora e pesquisadora da USP que há cerca de 20 anos coordena o grupo de pesquisa "Discriminação, Preconceito, Estigma" na universidade, diz que o acordo é gravíssimo porque é uma violência à pluralidade de crenças da população, fere a democracia e cria cidadãos de segunda classe: o católico e o não-católico.

“O Governo não ofereceu informação. Optou pelo silêncio, que, obviamente, não deu uma boa impressão. Por que o sigilo? Que tipo de pressão sofreu para isso? Como o presidente faz isso sem abrir para discussão?”, questiona.

O acordo tem 20 artigos. Na proposta inicial, o Vaticano queria estabelecer o ensino religioso "católico romano" como matéria obrigatória do ensino fundamental nas escolas públicas em um dos itens. A Constituição do Brasil permite o ensino religioso nas escolas públicas, mas facultativo: o aluno, ou sua família, pode escolher se quer ou não ter essas aulas.

O governo brasileiro suprimiu a menção à obrigatoriedade, acrescentou a expressão “outras confissões” ao texto e justificou: para assegurar "o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação".

A professora comenta, que em linhas gerais, o artigo se ateve ao que está na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Ela lembra também que "tudo o que se encontra na legislação brasileira poderá ser modificado, o que de certa forma a menção "em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes" procura garantir, ao que parece".

"O que mais se anunciou como polêmico parece ter sido tratado com cuidado e acabou por se restringir à situação legal atual, que em si é polêmica, mais o fato de o contexto todo do documento permitir interpretações menos promissoras para a pluralidade religiosa", completa Roseli.

O acordo vai na contramão do que defendem diversas associações científicas. Essas instituições lideram um movimento pelo fim do ensino religioso nas escolas públicas.

Porque, se ratificado, estabelecerá discriminação, marcando quem é cidadão de primeira ou de segunda classe em assuntos religiosos, reafirmando preconceitos já existentes e fragilizando as pessoas pertencentes às minorias religiosas, que poderão se sentir ameaçados e constrangidos.

“Ele [o acordo] não contempla a liberdade de consciência. Por exemplo, não querer dar religião para os filhos é o direito de uma família. Isso não os torna menos cidadãos brasileiros. Ser ateu, agnóstico, é um direto de foro íntimo. É Absolutamente estigmatizador e criará a cultura de que quem não teve ensino religioso não é íntegro. É preconceituoso, não toca na liberdade de consciência em momento algum.”


Roseli questiona tanto a forma como o acordo foi feito quanto o conteúdo. "Se o documento não fere o Estado laico, como diz o governo, deveria ter sido submetido a uma consulta pública. É inaceitável fazer isso na democracia", afirma a especialista.

Com uma cópia do documento na mão, Roseli pontuou à reportagem do iG quais os principais problemas do acordo. A pesquisadora da USP pediu "especial atenção da cidadania e dos congressistas, que têm a possibilidade de não ratificar o acordo, para os três últimos artigos do acordo". Ela recomenda que as pessoas leiam o texto, disponível neste endereço, do fim para o começo.

Segundo Roseli, no final do documento, no artigo 18, está um dos maiores riscos: “O presente acordo poderá ser complementado”. Ela explica que esse ponto deixa uma porta aberta para novos adendos e abre precedente para que a Igreja influencie em assuntos ainda mais polêmicos. “O governo assinou, deixando aberta essa possibilidade. Isso pode dar espaço para que a Igreja intervenha em questões como o aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo, pesquisa com células troco embrionárias, entre outras.”

O texto do documento também estabelece que o patrimônio cultural da Igreja - as igrejas histórias e as obras de arte - pertencem também ao governo brasileiro e ambos têm a responsabilidade de preservá-lo. A pesquisadora diverge: “A propriedade histórico e cultural é da Igreja, mas quem vai cuidar é o Estado. A posse é da Igreja, mas quem gasta é o Estado, que pode ser chamado para restaurar obras a qualquer momento”.

O documento ainda formaliza o respeito ao segredo da confissão e indica que a atividade dos sacerdotes não caracteriza vínculo empregatício. A pesquisadora defende que profissionais que dedicam suas vidas tenham seus direitos trabalhistas respeitados: “O direito trabalhista precisa ser respeitado. Essas pessoas seguem ordens, têm atribuições. Isso é primário. É coisa do inicio do século passado.”.

Para ela, se o acordo for ratificado, o Brasil ficará de mãos amarradas. “Se o acordo passar no Congresso, o Brasil dá poder à Igreja e veta a si mesmo”, afirma Roseli. A pesquisadora diz acreditar que todas as medidas representem um retrocesso na separação entre Igreja e Estado, conseguida há 119 anos. “Parece que foi feito para celebrar, entre aspas, a Proclamação de República, no dia 15 de novembro. Há 119 anos estavam sendo separadas Igreja e Estado. É um grande retrocesso, voltamos no tempo”, asseverou.

Apesar da indignação, a pesquisadora aponta que o documento, por ser um acordo bilateral, ainda passará pela aprovação do Congresso Nacional para ser ratificado. “É preciso uma grande movimentação para que o documento não seja ratificado. Talvez eles compreendam que isso vai contra a Constituição.” A professora destaca que será importante a análise de juristas e de outros estudiosos. "A primeira leitura, no calor da hora, não dispensa o aprofundamento, mas já suscita o alerta", finaliza Roseli.

Fonte: IG

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